A vidraça do
bar voltou a ficar manchada pela água embaçada de uma poça que havia bem na
esquina. Armadilha fácil pra qualquer desavisado que não conhecesse aquele
metro quadrado, ou curioso que por acaso parasse para apreciar o movimento do
estabelecimento muito frequentado por mais variada clientela.
Era um bar de
centro da cidade, desses bares de paredes manchadas e cheiros encravados.
Prédio antigo, fascinante, guardava tanta história que chegara a ter vida própria.
Recanto de boêmios, artistas, prostitutas, amantes e solitários.
Como Luísa.
Mulher misteriosa. Pedia sempre a mesma bebida, no mesmo lugar, no mesmo
horário. Rotineiramente. Pontualidade britânica. Sempre depois da chuva.
Quando o sol
transpassava o último par de vitrais do alto da janela esquerda e refletia na
prateleira de cristais, que guardava os conhaques, uísques e licores, um raio
luminoso rebatia bem na direção de Luísa. E ficava aquela mulher tomando seu
gim com sua luz própria. Seu foco a quarenta-e-cinco-graus. Seus olhos
brilhavam tão intensamente quanto os cubos de gelo no copo. E sua alma nesse
exato momento ficava translúcida como sua bebida.
Luísa era
mais uma adotada por Madrinha, a dona do bar. Senhora de meia idade batizada
assim pelas putas do entorno que viam nela uma mãe, amiga e companheira. Não
que Luísa não tivesse casa, viva até bem. Possuía um apartamento de dois
quartos com varanda que dava para praça da república. Bem mobiliado e amplo.
Seu tempo
naquele bar se limitava aos fins de tarde. Tomava duas ou três doses calmamente
como se esperasse alguém. Uma amiga que não via há tempos, um parente aflito
por problemas familiares ou quem sabe um amor.
No começo as
pessoas estranharam. Ficou conhecida como a doida do chapéu. Por causa do seu
chapéu à zamparina, afinal todos eram curiosos. Uma proteção ou um charme? E
como num ritual, reza a etiqueta, tirava seu chapéu ao sentar e o colocava em
seu colo, tudo delicadamente desenhado. Os passos, a respiração, o sentar, a
postura, o beber, olhar pra rua e o esperar.
Com o passar
do tempo Luísa tornou-se parte daquele bar. Uma pintura dramática e vibrante
que decorava aquele ambiente. O mesmo gim, a mesma luz, o mesmo chapéu, quem
sabe até a mesma roupa. Seria Luísa uma louca?
Nunca a viram
com ninguém. Nem filhos, irmãos, amigos, nada. Segundo madrinha sua voz é leve
e terna. Parecia voz de professora. A única vez que se ouvia sua voz era para
pedir uma dose de gim e dois cubos de gelo.
Chegou a
fazer-se um bolão de apostas sobre sua profissão, secretária, aeromoça,
telefonista, até de puta aposentada com saudades da profissão ela foi
classificada.
Luísa, uma
figura incógnita que visitava aquele bar dentre as várias que circulavam por
lá. algumas às vezes paravam, outras só olhavam. Tinham os que mudavam de
calçada ao perceber que aquela fachada estupendamente gloriosa era a do famoso
bar.
Luísa adorava
aquele estabelecimento. Sentia-se a vontade, ria poucas vezes, não se sabe por
quê. Seus olhos aguardavam ansiosos para encontrar alguém. Estrategicamente
sentava onde sua visão seria ampla o suficiente para acompanhar os movimentos
internos e externos no bar.
E todos os
dias a mesma coisa: o chapéu, o gim, o sol.
Certo dia de
sol, não choveu. Dia atípico. Apenas uma leve brisa âmbar desenhava a silhueta
dos muros e prédios daquela cidade nortista e perfumou com chuva o asfalto
quente que descolava nos sapatos das pessoas.
Neste dia
Luísa trocou seu vestido. Dessa vez sem chapéu com uma bolsa pequena e
charmosa. Estava com um penteado bem armado e delicado. Elegantíssima. Pediu uísque.
Dose dupla, On the rock! Observou o
cubo de gelo derreter no fundo do copo antes de beber o último gole. Seco.
Rápido. Olhou o copo vazio, agradeceu a madrinha, perguntou pelo banheiro e
caminhou em direção a ele. Cantarolava uma canção e apertou a minúscula bolsa
como uma criança ao matar um passarinho com as próprias mãos. Abriu a porta,
respirou fundo e olhou pra rua. Ninguém familiar a ela apareceu naquele
instante.
A porta se
fechou e um tiro calou a agitação de todos no bar.
Marckson de Moraes – 08/02/2010.
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